Mulheres na luta antifascista, antirracista e no combate à violência
Por PSOL em 15 de junho de 2020
Resolução política do Setorial Nacional de Mulheres do PSOL
Conselho Feminista, 13 de junho de 2020
Vivemos a maior crise multifatorial – política, econômica, social e sanitária – em décadas no Brasil e no mundo, o que exige daqueles que experienciam esse momento histórico, na perspectiva dos partidos e movimentos de oposição de esquerda ao governo e às políticas protofascistas que emergem desse campo, grande consistência e consequência em suas formulações políticas e práticas.
É diante desse cenário que a luta antirracista, impulsionada pelo assassinato de George Floyd, na cidade de Minneapolis, nos Estados Unidos, foi internacionalizada as mobilizações de rua, em plena pandemia. A adesão de amplos setores da população mundial às manifestações representa um salto que é de quantidade, mas também de qualidade ao movimento. É verdade que jamais houve silêncio para os assassinatos e a truculência policial destinada aos negros e negras, entretanto, as imagens brutais somada à crise socioeconômica e a crise de saúde mundial, fez os atos propagarem-se de maneira significativa; talvez única na história, gerando movimentos por todo os Estados Unidos, por dias e dias seguidos de maneira crescente, além do apoio internacional mobilizado.
Há muitas semelhanças entre Brasil e Estados Unidos, não restando apenas a violência e truculência policial: ambos países apresentam governos ultra neoliberais e conservadores, que ao negarem crise pandêmica, relegaram a população negra ao aprofundamento da crise social, o aumento do desemprego e a impossibilidade de manter o isolamento social. Para a maioria da população negra, a necessidade de manter seus trabalhos os leva a escolha entre a vida e a morte, tal qual a necessidade de isolamento. Os cruéis assassinatos do menino João Pedro e do menino Miguel, demonstram o quanto a necropolítica, atinge os mesmos corpos de maneira variada, e a brutalidade destinada aos corpos negros que a pandemia expõe. A luta antirracista sempre foi urgente, enquanto feministas antirracistas, temos como tarefa central a solidariedade ativa nessa luta. A luta antirracista, especialmente o movimento de mulheres negras, já era expressão essencial da luta anti sistêmica. No Brasil, por essência, a luta antirracista é uma luta estrutural, e é preciso apontar a longo prazo a derrocada desse sistema que desumaniza nossos corpos, apesar de termos como foco o ‘Fora Bolsonaro’, nos EUA o movimento já demonstrou que com luta é possível vencer; como por exemplo vemos que se deu em Minnesota, a cidade em George Floyd foi executado, e está em reavaliação de todo seu sistema de segurança pública. Que essa faísca incendeie o mundo!
Enfrentamos um cenário de agravamento da situação política e radicalização do discurso bolsonarista, ao mesmo tempo em que as cisões dos setores da burguesia que sustentava politicamente o governo Bolsonaro se aprofundam. Do outro lado, o fortalecimento dos movimentos de contestação e oposição à extrema direita nas ruas e nas redes nas últimas semanas, sendo inspirados pelos ventos da luta antirracista dos EUA, foram essenciais para galvanizar a luta pelo ‘Fora Bolsonaro’. O fortalecimento dessa resistência demonstra a necessidade de que a luta contra o governo Bolsonaro seja um eixo organizador da nossa militância nesse período. A partir dessa experiência, se faz necessário fortalecer um campo da oposição programática e que dá corpo à resistência organizada e propositiva à esta crise, abarcando os diversos setores que se colocam em movimento, bem como organizações e movimentos sociais que se somam na luta antifascista. Esta é uma tarefa central do PSOL e da Setorial Nacional de Mulheres.
A população brasileira vive um momento marcado pelo desamparo e pela dor da perda das vidas para a Covid-19. Ficou escancarada a face mais dura de uma sociedade pautada pelo lucro e explícito o conflito “capital x vida”, de que tanto falamos nas lutas feministas. Neste momento, em que o mundo e o país passam por profundas transformações devido à pandemia e suas consequências, urge que valores feministas e da luta pela igualdade de gênero marquem esse novo século e o mundo pós-pandemia. A luta por igualdade de condições de trabalho entre homens e mulheres, o direito à creche, à escola pública, restaurantes públicos, lavanderias públicas, fim dos ajustes fiscais, enfim, elementos que caminham no sentido da superação da crise dos cuidados, são pautas essenciais para o movimento feminista e para a vida das mulheres trabalhadoras.
Como temos diagnosticado ao longo dos últimos três meses, a pandemia expôs uma fratura já putrefata dos efeitos nefastos desta fase do neoliberalismo sobre a vida do povo. Como dirigentes feministas de nossas organizações e da Setorial, é nossa tarefa prioritária a compreensão e o apontamento de saídas e estruturas de apoio possíveis para as mulheres brasileiras tidas em sua diversidade: cisgêneras, transgêneras, travestis, lésbicas, bissexuais, negras, quilombolas, indígenas, com deficiência, migrantes, nortistas, camponesas. O estágio frágil do Estado como instituição de suporte e assistência às mulheres mães, periféricas e faveladas, camponesas, desempregadas, vítimas de violência, trabalhadoras de serviços essenciais ou serviços historicamente sub dignificados; nos aponta agora com maior intensidade que nossos direitos e as nossas vidas sempre serão as primeiras a serem sacrificadas num cenário de crise.
Os governos brasileiros, em todas as suas esferas, não garantiram as condições necessárias para que a população trabalhadora, em sua maioria negra, pobre e das periferias, cumprisse o isolamento social necessário para a mitigação da pandemia. A garantia do auxílio emergencial foi uma conquista importante, fruto da pressão popular sobre o Congresso Nacional. Bolsonaro e Guedes, que até então se recusavam a apresentar qualquer medida de ajuda econômica, se viram obrigados a acatar a renda básica emergencial e passaram a clamar sua autoria. Apesar de milhões de brasileiras e brasileiros ainda não terem acessado a primeira parcela do auxílio, resultado da inoperância programada do poder executivo, o planalto já planeja reduzir o valor das parcelas e extinguir a renda básica em breve.
Diante deste cenário de devastação social e econômica e inação do poder público, a auto organização dos territórios em redes e campanhas de solidariedade, com a arrecadação e distribuição de cestas básicas, material de higiene pessoal e limpeza, equipamentos de proteção individual e água potável se mostrou uma necessidade premente. Contudo, o genocídio do povo negro segue sendo operado pelas ações policiais nesses territórios, levando à morte dezenas de jovens dentro ou próximo às suas casas. O encarceramento e a explosão de casos de Covid-19 nos estabelecimentos penitenciários segue como parte dessa política de morte e provoca o movimento negro a denunciar o racismo estrutural e a necropolítica operada pelo estado que atinge mais profundamente as mulheres negras, que tem seus filhos mortos e encarcerados. A violência racial é uma das marcas históricas da sociedade brasileira e é nossa tarefa nos somar às iniciativas das lutas antirracistas e antifascistas no país.
A menorização da existência e dignidade das mulheres para o atual governo, sua indiferença aos dados obscenos de aumento de violência doméstica, feminicídio e vulnerabilidade econômica, social e alimentar de mães e seus filhos são cada dia mais flagrantes. Sabemos que são as mulheres pobres e trabalhadoras, que em sua maioria são negras, que sentem na pele o desprezo do bolsonarismo por suas vidas. Esta realidade nos apresenta uma pequena mas relevante janela histórica para adensar a nossa afirmação programática dentro do movimento feminista brasileiro e latino-americano: a Setorial de Mulheres é uma instância auto organizada das mulheres do PSOL e nosso feminismo é anticapitalista, antifascista e antirracista. Apesar disso, reafirmar em tom de voz cada vez mais alto o nosso programa não é o bastante para que possamos participar como atrizes ativas e relevantes dessa conjuntura. Nossas formulações, mais do que nunca, precisam apontar saídas para além da Setorial e do PSOL, para que possamos construir uma resistência de mulheres brasileiras que honre a responsabilidade que nos cabe agora.
Campanha Nacional de Combate a Violência Contra as Mulheres
Já é de conhecimento geral que as necessárias políticas de isolamento social durante a pandemia do coronavírus impulsionaram o aumento das já assustadoras taxas de violência contra as mulheres do Brasil e no mundo. A reclusão das mulheres e crianças em lares violentos bem como a decadência da situação financeira das famílias nos colocam diante de uma grave situação de maior ameaça à vida das mulheres. Segundo pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em São Paulo, houve o aumento de 44,9% de casos de violência registrados, em relação ao mesmo período de 2019. A quantidade de feminicídios também subiu 46,2% no estado. Construir fortes campanhas de combate à violência de gênero e apontar saídas concretas para essas mulheres é urgente.
Um debate importante que se coloca neste momento é o método que orientará a construção coletiva do movimento feminista para fortalecer a nossa capacidade de intervenção na conjuntura. Experiências que reivindicamos como inspirações e exemplos cruciais para a pauta de gênero na América Latina – como a da Campaña Nacional Por el Derecho al Aborto Legal, Seguro y Gratuito, na Argentina – passaram pelo crivo do debate da hierarquização de pautas dentro movimento em frente ampla. Isso significou que deliberar pela pauta da legalização do aborto, naquele contexto, incluiu o esforço da supressão das diferenças entre os diversos setores que ali construíram e o entendimento de que a construção da frente – no que diz respeito àquele tema – precedia a autoconstrução de seus coletivos, movimentos e partidos.
No contexto brasileiro, considerando todas as flexões e refluxos que possui o movimento feminista atualmente e o peso dos fenômenos espontâneos dos ativismos feministas nos últimos anos, torna-se necessário empreender um mapeamento das forças e setores essenciais para reproduzir um movimento feminista de massas como almejamos, e também a adequação de uma pauta que seja compatível com o atual momento da consciência histórica da sociedade brasileira. Por isso, nos parece que é imprescindível que caminhemos juntas, no exercício honesto e complexo de produção de sínteses coletivas que nos coloque em condições de derrotar a ameaça do fascismo e demarcar, cada vez mais, que a luta de classes no Brasil oprime e mata essencialmente nossas mulheres negras e LBTs. E essa caminhada coesa aponta para a reivindicação de que reorganizar o movimento feminista brasileiro contemporâneo exige de nós assumir que a vanguarda dessa reorganização será compartilhada com diversas sujeitas e suas diversas influências políticas; e que o debate da hierarquização da pauta já está em curso, apesar da fragilidade que esse movimento em reorganização tem para sustentá-la.
No nosso Encontro Nacional de Mulheres do PSOL em 2019, aprovamos uma resolução política que deliberou pela construção da Setorial de um chamado aos movimentos, coletivos e partidos, por uma grande e massiva campanha de combate à violência contra as mulheres. A temática da violência atravessa a existência de todas as mulheres brasileiras e em números desproporcionais em comparação com outros países com características semelhantes às nossas. Através desta pauta, há condições objetivas de aglutinar todas as forças que compõem o cenário fragmentado do nosso movimento feminista, e nos dá condições de construir uma relação de debate na base da sociedade e disputar uma concepção positiva e propositiva de feminismo.
No mês de maio, a partir de iniciativa unificada no estado do Rio de Janeiro, a campanha Maio pela vida das Mulheres reacendeu o debate e demanda pela construção dessa campanha em nível nacional. Temos pautado a importância de formularmos uma intervenção coesa nesses espaços e apontando, inclusive, a grande lacuna de liderança e direção nessa articulação nacional. Enfrentar Bolsonaro e sua redoma conservadora não deve invisibilizar a cara e a cor das mulheres que são efetivamente o povo. Agora, mais do que nunca, demarcar nosso programa e a nossa prática política pela unidade e derrota do governo a partir da lutas unificada das mulheres é urgente.
Reorganização política e militante do período eleitoral em 2020
Somado à crise e às demandas práticas por organização e respostas, é impossível fugir do fato que esse ano passaremos por um processo eleitoral nos municípios. As eleições são uma arena de batalha política importante para o PSOL porque através delas temos a oportunidade de disputar corações e mentes para um projeto de transformação radical da sociedade, que não se encerra no próprio processo eleitoral. O período eleitoral é o momento em que o país está em fluxo de debate sobre concepções políticas, e incidir sobre esse momento é essencialmente assumir a tarefa de levar à sociedade as contribuições do programa do PSOL para o projeto de país que acreditamos que o povo deve ser inserido e progressivamente conquistar protagonismo na construção de um poder popular que nos coloque em condições conjunturais mais expressivamente relevantes para uma virada revolucionária no Estado brasileiro. Além disso, devemos ressaltar que há no PSOL o potencial de eleger candidatas e candidatos comprometidos com este programa.
No contexto das eleições municipais, ainda é essencial destacar que é um momento chave de validação e enraizamento das lideranças populares locais. No limite da experiência cotidiana na sociedade, é nas cidades que vivemos e fazemos política. É nas cidades que as mulheres são exploradas e violentadas, que sofrem a supressão de seus direitos e convivem com os limites do Estado burguês sob arrocho fiscal e recessão econômica. E é nas cidades que as construções populares coletivas que apontam saídas e auto-organizadas pelo povo são formuladas. Enquanto Setorial de Mulheres estaremos presentes na formulação de políticas para as filiadas e na disputa de um partido cada vez mais centralizado na noção de que o feminismo é prioridade num projeto socialista de mundo.
Foto: Fábio Montarroios